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Mostrando postagens de maio, 2020

A polaquinha

Estilo do autor achou seu limite na forma do romance Dalton Trevisan é um contista genial a ponto de fazer infindáveis variações em torno de meia dúzia de obsessões e recursos de estilo como a elipse e a frase curta ou curtíssima. Em A polaquinha (1985), enfrentou a escrita de um romance, e seria um exagero dizer que se tenha dado mal – pelo menos até as vizinhanças do desfecho. No Sul do Brasil, “polaca” designa prostituta. A personagem-título é uma garota baixinha que narra sua própria história, na qual Trevisan mais uma vez exercita o tom de tragicomédia suburbana predominante em seus contos desde a estreia com A guerra conjugal (1959). Não há nada de propriamente novo na polaquinha; ela atravessa os melhores anos da juventude às voltas com homens vulgares, aos quais se entrega de modo instintivo e num crescendo de perversão que a leva a prostituir-se, por assim dizer, industrialmente, sob as ordens da velha caftina “tia Olga”. A moça é dotada, desde cedo, de uma curiosi

A normalista

Falta algo para que esse livro faça jus ao rótulo “naturalista” A ficção naturalista brasileira padeceu de um incoerente sincretismo entre veleidade cientificista e restolhos de retórica sentimentalóide. Nem Aluísio Azevedo, o aplicado discípulo de Eça e Zola, escapou a esses acessos de ímpeto revolucionário pela metade. Mas em poucas obras do período o defeito de fábrica é tão evidente como em A normalista (1893), de Adolfo Caminha. O romance não deixa de ser atraente. O ficcionista soube conduzir a narrativa de maneira a manter a curiosidade pelo famoso “e depois?”. Também contribuiu para o atrativo a sua predileção por temas chocantes para a mentalidade da época, como, no caso, o envolvimento sexual de um padrinho com uma afilhada. O padrinho é o escriturário João da Mata, e a afilhada é Maria do Carmo, a normalista que intitula o romance. Mas qualquer leitura um pouco mais atenta nota o emprego canhestro do restante instrumental narrativo. A caracterização das personagen

Grande sertão: veredas

Incomparável, obra de Rosa é o maior romance brasileiro O metro para medir  Grande sertão: veredas  (1956) está além da literatura brasileira. Nem é viável comparar a obra-prima de Guimarães Rosa com qualquer outro livro publicado em português, à exceção de  Os lusíadas  (1572). A ambição do romance é desmedida, assim como a capacidade do autor de fazer-se jus. Mede-se Grande sertão  é pela  Ilíada , por Dom Quixote, pelo  Ulysses  de James Joyce. O que o romance tem de especial é a amplitude do tempo e do espaço, replicada e traduzida na amplitude da experimentação de linguagem do narrador, o ex-jagunço Riobaldo, apelidado Tatarana. O sertão é o mundo, diz ele: o espaço geográfico situado entre o centro de Minas e as divisas com Goiás e Bahia se torna, por meio do andamento da narrativa e da diversidade de personagens e destinos que a ela comparecem, um universo capaz de conter o sumo da experiência humana. “Viver é muito perigoso”, repete Riobaldo umas tantas vezes, e de mo

A viuvinha

Bom lugar para estudar os rudimentos da forma narrativa A fórmula é a do folhetim, com suas surpresas óbvias salpicando o enredo. Mas o escritor José de Alencar ainda não tinha desenvolvido aquela sua invencível prolixidade. Por isso  A viuvinha  (1857), publicado no mesmo ano que  O guarani , está mais para as dimensões e o andamento de  Cinco minutos  (1856), conquanto lhe seja ainda inferior. O narrador é o mesmo daquele livro inicial de Alencar. A destinatária também é sua prima, a quem ele escreve mais uma longa carta, desta vez contando a história de Jorge e Carolina. O enredo poderia até surpreender, caso o escritor dispusesse da retórica necessária e soubesse dosar o tempo narrativo de modo a não precipitar os fatos. Mas o livro vai mesmo aos atropelos, tanto que entre o final do capítulo 9º e o início do 10º se passam subitamente cinco anos, assim como do transcurso de outro ano se dá conta em apenas  uma linha  do capítulo XV. O drama desse casalzinho lembra o tea

O casamento

Romance “imoral” cheio de “leprosos”: puro Nelson Rodrigues Nelson Rodrigues divertiu-se diabolicamente com as taras da burguesia. Em sua obra, a psicanálise se repete como farsa. Nelson se olhava ao espelho e, encarando suas próprias obsessões, fazia-as matéria-prima para uma galeria de tarados, na ficção e no teatro. O romance O casamento , como quase qualquer peça de sua obra, vale por uma súmula dessas obsessões, também sintetizadas pelas famosas frases lapidares do escritor. Uma delas – “Só os profetas enxergam o óbvio” – aparece nas primeiras páginas do relato, cujo enredo se concentra na véspera e antevéspera do casamento de Glorinha, filha de um ricaço carioca. Sabino, o pai, vai tendo sua nauseabunda consciência moral exposta ao longo desses dois dias, aos quais o escritor entremeia, com invejável perícia narrativa, episódios do passado que vão esclarecendo o drama do presente. O itinerário de Sabino é uma procissão de vilezas próprias e alheias cuja pátina vai-se de

A escrava Isaura

Leitura ainda cativante, mesmo com tanto abuso do clichê O andamento teatral da narrativa, com suas aparições providenciais de personagens inesperadas, responde pelos principais atrativos que A escrava Isaura (1875) ainda pode apresentar para um leitor do século XXI. O argumento do romance de Bernardo Guimarães, inaugurador da ficção regionalista brasileira com O ermitão de Muquém (1871), repousa além disso na infindável coitadice da belíssima Isaura, escrava branca educada pela mulher de seu dono como se fosse uma dama. O grande vilão é Leôncio, herdeiro da fazenda onde Isaura vive. Criado segundo um modelo de estroina ainda hoje muito em voga nas famílias abastadas, Leôncio é perdulário e mau caráter. Apropriadamente para um antagonista romântico, é incapaz de qualquer ação decente, assim como a heroína se reveste da infalível superioridade moral que é o corolário idealista de sua beleza incomparável. Mas há outros malvados, como a escrava invejosa e o caçador de recompens

Avalovara

Obra maior de Osman Lins une metafísica e crítica à ditadura Talvez o mais ambicioso romance brasileiro depois de  Grande sertão: veredas , a obra mais importante de Osman Lins é  Avalovara , publicado pela primeira vez em 1973. Desvendá-lo, como demonstra o estudo  A garganta das coisas , de Regina Dalcastagnè, envolve até mesmo uma incursão pela arquitetura medieval. A base da estrutura narrativa já envolve uma concepção geométrica, a sobreposição de um quadrado a uma espiral. Eles correspondem, respectivamente, à dimensão espacial e ao desenvolvimento temporal do romance. Numa das várias linhas narrativas resultantes desse arranjo, conta-se a história do escravo romano Loreius, criador – em troca da própria liberdade – do palíndromo latino SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Palíndromo é uma frase cujas letras são as mesmas se ela for lida ao contrário. Equação formal que se pretende espelho da multiplicidade do Real,  Avalovara  incomoda o leitor pela falta de compromisso

Diva

Clichê sentimental funciona bem nesse “perfil de mulher”   Segunda entre as narrativas que José de Alencar chamou “perfis de mulher”, Diva (1864) segue-se nessa linhagem a Lucíola e antecede Senhora . Esses três livros, juntamente com os três romances indianistas, são o cerne da contribuição do autor à ficção brasileira. Alencar tinha a cultura e o talento necessários à tarefa de tornar o romance brasileiro comparável ao de outras literaturas; até superior, se considerarmos a sensaboria que é o Werther de Goethe. Não tinha, é claro, o gênio de Machado de Assis ou a ousadia de Manuel Antônio de Almeida. O romance consegue ser interessante mesmo atendo-se ao clichê dos clichês: um namoro em que tanto o rapaz quanto a moça sintetizam o ideal burguês. O que envolve, naturalmente, a castidade. Em Lucíola , o fato de a protagonista ser uma prostituta é compensado por seu martírio, que estraga uma narrativa cujas grandes qualidades estavam justamente em antecipar, no retrato social

Amar, verbo intransitivo

“Idílio” de Mário de Andrade inclui psicodrama sexual Um livro “gordo de freudismo”, na definição do autor, que meses depois de publicá-lo acusava a crítica de reducionismo psicologista, Amar, verbo intransitivo (1927) participa do esforço experimental iniciado por Mário de Andrade nos Contos de Belazarte (1923-1926) e que culminaria em Macunaíma (1928). Mas o romance gira em torno de um psicodrama sexual, isso nem o próprio Mário poderia negar. O protagonistas é um adolescente “machucador” de suas irmãs menores, rapaz cuja masculinidade a despontar preocupa o pai, Sousa Costa, um típico pater familias paulistano endinheirado. Para impedir que Carlos se exponha aos perigos da iniciação sexual, o pai contrata uma “professora de amor” alemã, que passa a figurar perante a família do garoto como professora de piano e línguas. Com sua habilidade haurida em larga experiência, Fräulein Elza seduz o garoto, no entanto já iniciado na prostituição de rua, tão temida por seu pai.

A mão e a luva

Um esboço das melhores qualidades machadianas Bem mais do que na singela primeira narrativa longa de Machado de Assis, Ressurreição (1872), na segunda se mostram alguns daqueles elementos que tornariam o escritor o maior ficcionista brasileiro. A heroína Guiomar, capaz de considerar a “fria eleição do espírito” na escolha de um noivo, contém o esboço geral de Virgília, Sofia e Capitu, obras-primas da análise psicológica machadiana. Não que a “pintura de caracteres” do narrador seja perfeita em A mão e a luva (1874); por exemplo, o diálogo no qual Guiomar nomeia à madrinha o primo Jorge em vez de Luís Alves (seu verdadeiro eleito) é pouco convincente. Mas condução da narrativa já é admirável pela economia de meios. Nem o apego à sintaxe neoclássica nem certa artificialidade declamatória de alguns diálogos chegam a tornar o livro cansativo. E depois há as deliciosas metáforas, nas quais Machado já era mestre aos 35 anos. A ação decorre entre dois desenganos amorosos do es

Kalum

Menotti del Picchia fez indianismo requentado e às avessas A frase “Conseguirei o alemão com as pupilas falantes”, resultante de um cochilo do tipógrafo (na edição popular da Saraiva), talvez seja a melhor coisa que existe em Kalum (1936), romance de Menotti del Picchia que, em matéria de ruindade, só pode ser comparado a O choque das raças , de Monteiro Lobato, e às obras de certo escritor brasileiro contemporâneo. Só vale a pena falar do livro para que o leitor não perca com ele seu tempo – alguém já fez o sacrifício em seu lugar. Mas pode ser interessante estudar o rol de impropriedades lógicas perpetradas por Menotti. Subintitulada “O mistério do sertão”, a narrativa é ambientada na selva de Mato Grosso, em região que hoje faz parte de Rondônia. Mas o escritor paulista tinha uma ideia muito vaga do que fosse a floresta amazônica. Perde feio para José de Alencar, que nos romances indianistas se deu o trabalho de fazer pesquisa histórica e geográfica. Para começar, os

A moreninha

Obra de Macedo criou modelo para o romance no Brasil O estilo romântico expressa dois movimentos contraditórios da História: a crise dos valores aristocráticos e a elaboração de uma ideologia capaz de acomodá-los à nova visão de mundo plasmada pela economia burguesa. A moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo, sintetiza de modo paradigmático a contradição, encartando na previsível e frívola idealização do amor um retrato levemente irônico da sociedade fluminense da época. O romance é, com razão, tido pela historiografia literária como a primeira manifestação considerável da ficção brasileira. Narrado em terceira pessoa (mas isso saberemos somente no desfecho) pelo“semidoutor” Augusto, o romance se concentra nos amores desse estudante de Medicina com a personagem-título, a “travessa” Carolina. A princípio achada feia e impertinente, a mocinha cresce aos olhos do narrador devido a suas demonstrações de inteligência e caráter, tudo ao longo de dois dias passados por August

A lua vem da Ásia

Leitura de Campos é tão prazerosa quanto perturbadora A lua vem da Ásia (1963), de Campos de Carvalho, traz uma novidade para a ficção brasileira: é a primeira vez que o relato é enunciado por um louco, de dentro do hospício. O ficcionista mineiro, também autor de Vaca de nariz sutil e O púcaro búlgaro (não gosto de Chuva imóvel ), parece seguir de perto a lição do russo Gógol no Diário de um louco . Inicialmente pensando estar em um hotel, depois em um refúgio de guerra, o protagonista vai aos poucos percebendo os reais motivos de seu aprisionamento. Ele termina por identificá-los a um sistema de poder que imagina ser “a mesma Ordem de sempre”, associada um tanto difusamente aos interesses norte-americanos. Por isso, acha que os países devem passar a ser chamados de “merdas” e os Estados Unidos  devem ser “a capital de todas as merdas”. Primor de sarcasmo, a narrativa não pretende fazer nenhuma sociologia do hospício, mas usar o discurso da loucura como instrumento pa

A família Agulha

Romance de Guimarães Jr. é pautado pelo ridículo das personagens Muitos leitores atuais acharão exagero o subtítulo “romance humorístico”, de A família Agulha (1870), obra reposta no mercado por uma bem cuidada edição da Casa de Rui Barbosa. A sensibilidade do brasileiro médio ao humor deve ter-se desgastado com tanto consumo de TV e internet, e talvez por isso o romance não mais seja capaz de provocar aquela “dor do lado” de tanto rir, a que se referiu Mário Quintana. Wilson Martins teve razão ao lamentar o injusto esquecimento de A família Agulha , mas foi exagero compará-lo às Memórias de um sargento de milícias . Vale a pena conhecer o livro de Luís Guimarães Jr, porém com a ressalva de se tratar mais de uma sequência de cenas teatrais do que de um romance. A narrativa “em ziguezague” (termo usado por Flora Süssekind) acaba por implicar, quanto à forma romanesca, certo descompromisso com o aspecto representacional. Conversa para teóricos; vamos ao enredo. Era para ser a