A escrava Isaura


Leitura ainda cativante, mesmo com tanto abuso do clichê

O andamento teatral da narrativa, com suas aparições providenciais de personagens inesperadas, responde pelos principais atrativos que A escrava Isaura (1875) ainda pode apresentar para um leitor do século XXI. O argumento do romance de Bernardo Guimarães, inaugurador da ficção regionalista brasileira com O ermitão de Muquém (1871), repousa além disso na infindável coitadice da belíssima Isaura, escrava branca educada pela mulher de seu dono como se fosse uma dama.

O grande vilão é Leôncio, herdeiro da fazenda onde Isaura vive. Criado segundo um modelo de estroina ainda hoje muito em voga nas famílias abastadas, Leôncio é perdulário e mau caráter. Apropriadamente para um antagonista romântico, é incapaz de qualquer ação decente, assim como a heroína se reveste da infalível superioridade moral que é o corolário idealista de sua beleza incomparável. Mas há outros malvados, como a escrava invejosa e o caçador de recompensas Martinho. Alguns personagens secundários, a mulher de Leôncio, Malvina, e o feitor Miguel, pai de Isaura, são mais parecidos com gente de verdade e têm reações um pouco menos previsíveis diante dos acontecimentos.

Nessa gangorra maniqueísta, o riquíssimo pernambucano Álvaro está do lado de Isaura. É ele que acaba salvando-a das maquinações de Leôncio, depois de conhecê-la em Recife como moça modesta e discreta por fim denunciada por Martinho como escrava fugida. Ao contrário de Leôncio, e de modo semelhante ao jardineiro idiota Belchior, aquele que no princípio levava um ramalhete de “froles” para Isaura e no penúltimo capítulo está prestes a casar-se com ela, Álvaro dedica à protagonista um amor puro. Amor que, somado a seus sentimentos humanitários, leva-o a persistir na tentativa de resgatar a linda escrava, frustrando no último capítulo (é claro...) os planos maléficos de Leôncio.

Para quem não pede a um romance mais do que distração, A escrava Isaura é leitura cativante, e não por acaso deu origem à telenovela brasileira de maior sucesso. Mas o caso é diferente se o leitor tiver a capacidade de se incomodar com os excessos da idealização romântica. Quanto ao estilo, será preciso procurar bastante para encontrar um livro no qual a mania de pendurar dois ou três adjetivos em cada substantivo tenha sido levada a tais extremos.

A escrava Isaura é talvez o compêndio mais completo das limitações de uma tradição ficcional ainda em esboço. Mas, século e meio depois, os modestos recursos técnicos do ficcionista mineiro ainda são, feitos alguns abatimentos, a moeda corrente em boa parte da ficção que obtém sucesso de público.

Eloésio Paulo        Instagram: @eloesiopaulo

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