Postagens

Mostrando postagens de junho, 2020

Memórias de um sargento de milícias

Divertida crônica dos costumes da época de D. João VI A pergunta sobre a “utilidade” da literatura, que as mentes pragmáticas não se cansam de repetir, recebe boa resposta numa leitura atenta das Memórias de um sargento de milícias (1854/5), romance de Manuel Antônio de Almeida inicialmente publicado na forma de folhetim. O caráter dialético da moralidade em relação ao interesse, a relatividade do mérito para a ascensão social, os institutos do pistolão e do jeitinho brasileiro: esses temas com que certos sociólogos se comprazem em longas arengas científicas são apresentados pelo romancista, no seu único livro, com a saborosa despretensão característica do saber verdadeiramente lastreado. Assim, seguir as venturas e desventuras do malandro Leonardo, “filho de uma pisadela e de um beslicão” (e nascido apenas sete meses depois deles), conjuga o prazer do texto à compreensão sucinta das razões pelas quais o Brasil se tornou o que é. O autor, que era um estudante de medicina com

Corpo vivo

Ensaio do Grande sertão , pena que posterior Uma espécie de faroeste nordestino é a substância de Corpo vivo (1962), com o qual o escritor baiano Adonias Filho concluiu a trilogia de que também fazem parte Os servos da morte (1946) e Memórias de Lázaro (1952). O enredo gira em torno de Cajango, menino da zona cacaueira que, tendo presenciado o assassinato de sua família, é entregue a um tio que o adestra na arte do assassinato de onças e seres humanos. A narrativa se estrutura por fragmentos, com algumas quebras da linearidade temporal, de modo que o leitor demora a situar-se na história. Contribui para isso o estilo sincopado, cheio de reviravoltas e pretensos efeitos poéticos. A certa altura, porém, fica claro que o assunto é a vingança contra os assassinos dos pais e irmãs de Cajango. Compreender isso pode demandar, depois da última página, um retorno ao começo do livro. Muitos leitores, sem disposição para isso, abandonarão o romance por achá-lo confuso. Para quem per

Lucíola

Cenas eróticas são o melhor nessa obra de Alencar O final moralista, as metáforas vegetais e a mania de “embeber os olhos” dos personagens a cada cena sentimental estragam, para um leitor de hoje em dia, as inegáveis qualidades de Lucíola (1862), o primeiro dos “perfis de mulher” feitos por José de Alencar. O problema do romance é que a protagonista, sendo uma prostituta, não poderia merecer um final feliz, sob pena de forte infração ao código moral do público alencariano. Narrado por Paulo, advogado pernambucano recém-chegado à Corte na época dos fatos, Lucíola tem aquelas irregularidades de construção que, a par da ambição temática desmedida, impediram Alencar de ser um grande escritor. Logo em seu primeiro dia no Rio, Paulo conhece Lúcia, a mulher mais bonita do lugar, assim como a Emília de Diva (1864) e a Aurélia de Senhora (1875). Sabendo que ela se prostituía, ele acaba, depois de alguma hesitação, tomando-a por amante. Aí começa a complicação, pois o caráter de Lú

Zero

Retrato da consciência histórica no auge da ditadura Zero (1975) foi um dos poucos romances censurados pelo regime militar instalado pelo golpe de 1964. Pudera: suas referências explícitas ao momento histórico, especialmente algumas descrições minuciosas da tortura praticada nos quartéis, eram uma denúncia muito forte para ser tolerada. Outros escritores retrataram o regime no auge da repressão, mas nenhum de maneira tão contundente como Ignácio de Loyola Brandão. Publicado inicialmente na Itália, Zero saiu logo em seguida no Brasil e tornou-se, junto com A festa , de Ivan Ângelo, referência incontornável da ficção produzida naquele período. A forma do romance é tão representativa quanto seu conteúdo, e por sinal homóloga a ele. Isso torna o livro um tanto datado, mas é preciso observar que no início dos anos 1970 as coisas não apareciam tão claras como as vemos hoje. O autor construiu uma narrativa caótica e impura, e exatamente por isso Zero é uma das obras que melhor re

Úrsula

Fraco como ficção, mas válido como resgate histórico Tudo (ou quase tudo) merece ser visto em perspectiva, mas não existe carimbo ideológico capaz de redimir Úrsula (1859) como obra literária. Seria o mesmo que reputar o Trabant, aquela lata-de-sardinhas equipada com quatro rodas, um bom automóvel só porque foi o que a indústria da Alemanha Oriental conseguiu fabricar. Não se trata de negar os enormes méritos da autora, Maria Firmina dos Reis, mestiça maranhense que conseguiu ser professora e escritora numa remota província de nosso país tão cruel, hoje e sempre, com índios, negros e pobres em geral. Ocorre que mesmo a tentativa de fazer de Úrsula um romance abolicionista é desmentida pelo fato de que, no enredo, o drama dos escravos não passa de penduricalho secundário à intriga trágico-amorosa que parece ter-se inspirado bastante em Alexandre Herculano. Além disso, tanto os negros como as mulheres do livro, à exceção de Adelaide – transformada de moça adorável em trai

Armadilha para Lamartine

Um caso sui generis de édipo textual Um rapaz de 21 anos cuja crise existencial desemboca na internação em um hospício, instituição que se revela muito opressiva e capaz de destruir alguém por meio do seu “tratamento”. A semelhança do enredo com o do filme Bicho de sete cabeças não é mera coincidência: Armadilha para Lamartine (1976) é contemporâneo do livro Canto dos malditos (1975), que deu origem ao belo filme de Laís Bodanzky. O autor do romance assina como “Carlos & Carlos Sussekind”, fazendo justiça a seu pai, cujo diário íntimo seria, segundo Carlos Sussekind de Mendonça Filho, a base material de seu texto ficcional. Não há muitas obras-primas na literatura brasileira dos anos 1970, se se considerar como ponto de referência a ficção modernista; sem dúvida, Armadilha para Lamartine é uma delas. O enredo é composto por dois subconjuntos, as “Duas mensagens do Pavilhão dos Tranquilos” e o “Diário da varandola-gabinete”. No primeiro, Lamartine se faz passar por u

Ressurreição

Um esboço bem rudimentar do futuro grande escritor O romancista estreante Machado de Assis já era acometido pela mania dos prólogos e, em Ressurreição (1872), escreveu um deles quase pedindo desculpas pelo atrevimento de tentar a narrativa longa. Machado já era poeta, dramaturgo e contista, mas só depois dos 30 anos criou coragem para aventurar-se no gênero em que pontificavam Macedo e Alencar. Ao contrário de seu protagonista, o escritor não “perdeu o bem pelo receio de buscá-lo”: os versos de Shakespeare, citados no prólogo e também no desfecho, patenteiam que o romancista novel era adepto do “quem não arrisca não petisca”. E, como sabemos, fez muito bem em arriscar-se. Mas ele tinha razão ao colocar ressalvas a si mesmo. Ressurreição é um pequeno compêndio dos mais surrados recursos da ficção romântica, a começar pela carta misteriosa da qual depende o desfecho. O livro é uma história sentimental com meia dúzia de vaivéns. Félix, jovem médico favorecido por uma herança i

Galvez, imperador do Acre

Uma divertida sátira da revolução amazônica No final da década de 1970, o romance de Márcio Souza era um dos grandes sucessos de público da literatura brasileira. O país vivia o “ boom editorial” que colocou no mercado muitos dos escritores contemporâneos mais importantes. Cinco anos depois de lançado, Galvez, imperador do Acre (1976) já havia esgotado nove edições. O protagonista algo pícaro e os ágeis capítulos curtos certamente estiveram na raiz de tamanho sucesso. Chamado de “folhetim” pelo autor, o relato se passa nos últimos anos do século XIX e gira em torno das aventuras de Luiz Galvez, um espanhol que acaba, meio por acaso, liderando a aventura de tornar o Acre, então parte do território boliviano, um país independente a ser depois incorporado à república brasileira – como de fato ocorreu, mas pela via diplomático-financeira: as terras foram compradas pelo Brasil. As peripécias de Galvez começam com uma acidental intervenção na qual, fugindo do marido de uma de suas mu

Iracema

Professores, não obriguem alguém de 13 anos a ler... Fincando as estacas míticas que assinalam a paisagem do Ceará – Maranguape, Quixeramobim, Baturité e muitas outras –, José de Alencar escreveu um dos mais bonitos livros da nossa literatura. Tudo o que em outras obras suas é, amiúde, afetação e artifício, em Iracema (1865) compõe a medida justa de uma linguagem adequada à estética muito pessoal desenvolvida pelo o autor com um olho na mitopoesia de Homero: não falta, no caso, uma guerra provocada pelo rapto consentido da mais bela das mulheres. Os que chamam Iracema de “poema em prosa” não mentem quanto à origem poética do relato, esclarecida pelo próprio autor. Mas ao resultado final seria melhor chamar romance, e perfeitamente adequado ao enquadramento no Romantismo. Inadequado mesmo é o crime de lesa-literatura cometido por professores pretendentes a que jovens de 12 e 13 anos consigam ler Iracema , um enredo nuclearmente sentimental envolvido por poderoso arsenal erudito

A hora da estrela

A pouca vida e a muita morte de Macabéa “Estou me interessando terrivelmente por fatos”: a fala do narrador de A hora da estrela (1977) expressa um contato até certo ponto tardio, pois Clarice Lispector passou a vida preferindo tratar do efeito dos fatos na consciência de suas personagens. As jornadas interiores neste livro publicado meses antes da morte da escritora são curtas, ainda que certeiras, pois a personagem principal é matéria tão pobre que o único momento verdadeiramente intenso de sua vida é o da agonia, na qual ela se sente importante pela primeira vez. Na hora da morte, Macabéa finalmente “nasce”, e por isso o narrador, um certo Rodrigo S.M. (“na verdade Clarice Lispector”), comenta entre parênteses: “A verdade é sempre um contacto interior inexplicável. A verdade é irreconhecível. Portanto não existe? Não, para os homens não existe.” Esse comentário, por contraste, confirma o quanto tratar de “fatos” era algo estranho à obra da escritora. Depois de um introito

Dona Gudinha do Poço

Não há naturalismo no romance “naturalista” de Oliveira Paiva Arrolado pela historiografia literária como naturalista, Dona Guidinha do Poço (1952), de Manuel de Oliveira Paiva, quase nada tem daquela ficção de discutível base “científica”, teorizada e praticada por Zola na metade do século XIX. Antes o romance de Oliveira Paiva, que ficou esperou mais de 60 anos pela primeira edição, poderia ser chamado naturista , tal o empenho do autor em retratar o sertão do Ceará. Suas melhores passagens são descrições da natureza em termos que tocam a plasticidade da poesia. O estilo, ainda que irregular, é a grande qualidade do prosador cearense. Bastante ousada para a época, por exemplo, sua transcrição da fala de escravos e sertanejos analfabetos. Por vezes, no entanto, a voz do narrador sai tisnada pela repolhuda retórica romântica: “Pela porta do lado entrava finalmente a eterna mocidade do amanhecer (...) a frescura daquela embalsamada atmosfera de junho com a sua belíssima nota de