Dona Gudinha do Poço


Não há naturalismo no romance “naturalista” de Oliveira Paiva

Arrolado pela historiografia literária como naturalista, Dona Guidinha do Poço (1952), de Manuel de Oliveira Paiva, quase nada tem daquela ficção de discutível base “científica”, teorizada e praticada por Zola na metade do século XIX. Antes o romance de Oliveira Paiva, que ficou esperou mais de 60 anos pela primeira edição, poderia ser chamado naturista, tal o empenho do autor em retratar o sertão do Ceará. Suas melhores passagens são descrições da natureza em termos que tocam a plasticidade da poesia.
O estilo, ainda que irregular, é a grande qualidade do prosador cearense. Bastante ousada para a época, por exemplo, sua transcrição da fala de escravos e sertanejos analfabetos. Por vezes, no entanto, a voz do narrador sai tisnada pela repolhuda retórica romântica: “Pela porta do lado entrava finalmente a eterna mocidade do amanhecer (...) a frescura daquela embalsamada atmosfera de junho com a sua belíssima nota de inimitável diapasão.”
A narrativa propriamente dita é seu tanto descosida. São um pouco exagerados certos elogios da crítica à caracterização da protagonista, em torno da qual gravita um mundinho roceiro e aldeão, composto de “localidades que só leem as diatribes da imprensa indecorosa das capitais, só adoram santos de pau pincelados de ouro, só conhecem Deus pelo latim do vigário” – o trecho lembra a sátira de Eça à província de Portugal, raro vestígio inegável de influência naturalista no romance.
O enredo culmina num assassinato. A década e meia vivida por Margarida Barros, herdeira do Poço da Moita e de várias outras fazendas, com o marido frouxo (já por ser de extração econômica inferior), encerra-se quando ela paga um empregado para matá-lo. O motivo do crime, amores da protagonista com o janota Secundino, sobrinho do assassinado, fica pintado com tintas muito leves nessa “água-forte do latifúndio nordestino” (Alfredo Bosi).
Não há dúvida de que Margarida tem uma fixação pelo rapaz, mas em nenhum momento fica estabelecida a natureza carnal da relação entre ambos. Teriam o sobrinho e a tia virado amantes depois do retorno de uma festa noturna? É provável, mas o enredo não provê a resposta a essa pergunta, como a várias outras. E a lacuna parece não resultar de nenhuma intenção poético-narrativa.
O romance entretece episódios que culminam no assassinato de Quinquim, mas a elaboração das razões da criminosa, como da desconfiança do marido, também estaciona numa indefinição à beira do impressionismo. Tal incompletude não impede, no entanto, que Dona Guidinha do Poço seja superior a muitos romances mais renomados.
Eloésio Paulo


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