O louco do Cati

A sombra do Estado Novo paira sobre essa obra de Dyonélio
“Exagero do mineiro?” – A resposta à pergunta feita por Flávio Moreira da Costa na orelha da quarta edição de O louco do Cati (1942) é afirmativa: sim, Guimarães Rosa estava exagerando quando o considerou um dos dez melhores romances brasileiros. Não é que o livro, com toda a sua estranheza, não seja bom. É que ele perde, bem antes de chegar à metade, o tônus narrativo inicial, virando uma sequência de peripécias meio ambíguas, meio irônicas das quais, quase sempre ao fundo da cena, participa a figura tímida do protagonista sem nome.
Que pouco fala. Desde a primeira jornada, quando se incorpora a um grupo de amigos indo à praia num caminhão, ele é, sem qualquer análise mais detida, acolhido como doido manso por vários viajantes, aos quais em geral impõe despesas e algum incômodo. Isso começa com Norberto, o rapaz que o conduz ao longo do percurso encerrado numa prisão do Rio de Janeiro, capital da ditadura Vargas. (A sombra daquele regime sobrepaira o enredo.) As falas do louco – e isso se comprova no desfecho: ele é realmente louco – se resumem a respostas monossilábicas não transcritas pelo narrador e a exclamações referentes ao Cati, que em certa passagem ficamos sabendo ser um lugar onde havia tortura e assassinatos.
Solto da prisão, por algum motivo não esclarecido Norberto se aplica em conseguir a libertação de “Cati”, considerado pelas autoridades mais perigoso (há aqui algo de Kafka, é claro) que ele. Norberto é que tinha uma ficha policial, mas também não temos a explicação para sua soltura. Importante é que o louco, sempre acolhido e protegido por quem nunca o havia visto, embarca num navio para Santos e, acompanhando um casal de amantes clandestinos, viaja de carro para São Paulo e... Enfim, a narrativa consiste numa enfiada de viagens às quais se entremeiam estadas em abrigos provisórios, como hotéis e casas de personagens que entram no relato e dele saem como Pilatos no e do Credo. A coisa está a ponto de terminar em Caxias do Sul, onde um temporal retém o louco e seu último protetor, que então resolvem ir de avião para a fronteira uruguaia. Mas o voo é interrompido, e “Cati” empreende uma fuga que o leva às ruínas do lugar tão temido.
O romance começara como intrigante experimento narrativo marcado pela fragmentação, pelos planos entrecortados e atravessados, vez ou outra, por sopros de pura poesia. Mas a tensão exigida pelo empreendimento era difícil de manter, e talvez por isso ele foi abandonado em proveito da sequência de aventuras aqui muito mal resumida. Não é um livro ruim, mas está longe de merecer o elogio feito por Guimarães Rosa.
Eloésio Paulo
https://eloesiopaulo.blogspot.com/

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