Postagens

Mostrando postagens de abril, 2020

Serafim Ponte Grande

O “grande não-livro” de Oswald de Andrade A obra de Oswald de Andrade (ele odiava ser chamado de “Ôsvald”) é o que de mais porra-louca se escreveu na ficção brasileira. O escritor produziu em Serafim Ponte Grande uma súmula de todas as transgressões modernistas. O livro, publicado em 1933, é pura anarquia linguística e formal. Haroldo de Campos deu-lhe a perfeita definição: “um grande não-livro”. Realmente, a “anarco-forma” do Serafim é uma sequência de fragmentos de livros possíveis, unificados pela trajetória do protagonista, a todos os títulos mais um alter ego do escritor, como o de Memórias sentimentais de João Miramar (1922) . Cada um dos 11 episódios dá conta de uma fase da vida de Serafim e é uma obra-prima em termos de técnica narrativa. Duas figuras de linguagem presidem à composição. Na macroestrutura narrativa, emprega-se a sinédoque (parte pelo todo/todo pela parte), um tipo de metonímia: cada episódio não é propriamente narrado, mas indicado por anotações

Cinco minutos

O prolixo Alencar estreou com uma narrativa sucinta O escritor dos adjetivos em comboio estava ainda em gestação, e por isso o livro de estreia de José de Alencar tem um andamento narrativo ágil a ponto de reduzir-se, conforme a edição, a 40 ou 50 páginas. É verdade que as personagens secundárias são exageradamente esquemáticas e que o enredo se resume a uma história de amor na qual a tuberculose faz o papel de antagonista. Tais características tornam Cinco minutos (1856) boa uma surpresa para quem começou a conhecer Alencar por seus livros mais repolhudos, especialmente O guarani , que, mesmo datando do ano seguinte, é dificilmente lido com prazer hoje em dia. Em carta a uma prima, o narrador de Cinco minutos resume a história de como se apaixonou por uma desconhecida vista no bonde e acabou indo à Europa, onde os dois se casaram. Carlota, que o amara à primeira vista, reluta em permitir que o amor de ambos se realize; o motivo é o fato de considerar-se condenada à morte.

O altar das montanhas de Minas

Enredo sutil de Jaime Gouvêa entrelaça o desastre individual ao social Sebastião Nunes, o lendário poeta gráfico-marginal que desde o ano passado se exilou em Portugal, comparece a páginas tantas do livro O altar das montanhas de Minas (1991) travestido em caminhoneiro, a coadjuvar o acidente que estropia física e espiritualmente o protagonista; começo dando uma ideia geral da teia de sutis referências de que se compõe o único romance de Jaime Prado Gouvêa, por sinal amigo de Tião Nunes na vida dita real. Ganhador de importantes prêmios como contista, Jaime domina de saída dois códigos ariscos para a maioria dos escritores brasileiros em atividade: a língua portuguesa e a construção do enredo. Seu protagonista, Dirceu Dumont, tem marcas salientes de alter ego , mas de fato é “só” um personagem de ficção. O que move a história? Na superfície, a perambulação existencial desse jornalista-escritor de Belo Horizonte em busca do enredo que deveria surgir de recortes de jornal a re

A luneta mágica

Ironia redime o enredo um tanto óbvio nessa fábula moral Os meios justificam o fim em A luneta mágica , romance publicado em 1869 por Joaquim Manuel de Macedo, um escritor de sucesso – para os padrões brasileiros da época – desde A moreninha (1844), seu livro de estreia. O desfecho contém uma lição de sabedoria que hoje soa muito óbvia, mas a história de Simplício, narrador afetado por uma dupla miopia, é conduzida com o invulgar talento que fez de Macedo um modelo até para a esponja Machado de Assis, capaz de absorver todas as qualidades e nenhum defeito dos escritores que lia. Há nesse romance um pouco da ironia depois considerada a marca registrada de Machado. Especialmente na primeira parte, quando Simplício relata suas desventuras como usuário do monóculo forjado por um feiticeiro armênio, entrevê-se divertida crítica aos costumes e à política do Segundo Império: o narrador menciona zombeteiramente, em várias passagens, a desonestidade e a falta de espírito público de par

Hospício é Deus

Louca por excesso de lucidez, escritora romanceou vida no asilo Há consensos elementares dos quais o louco não logra participar. Nem ele nem os escritores que penetram a fundo no absurdo da condição humana. Daí aquela coincidência entre a loucura e a literatura, tão bem formulada por Soshana Felman: ambas são, no limite, “irredutíveis à interpretação”. Mas é bom lembrar que não existe a total irredutibilidade, pelo menos depois que se desenvolveu o instrumental psicanalítico de interpretação. E aqui temos um pasto farto para a Psicanálise, como para leitores (ainda os há) atraídos por vertigens e abismos. Hospício é Deus (1965), diário escrito por Maura Lopes Cançado (1930-1993) num hospício carioca, exemplifica bem o parentesco. Nem todos os livros de loucos podem ser considerados literatura, mas nesse caso, entre outras coisas, estamos diante de um ótimo romance moderno. É quase inevitável lê-lo como ficção, e não somente porque a escritora fosse dona de um estilo invejável

Esaú e Jacó

Há mais melancolia e menos ironia na história dos irmãos que se detestam A invenção de um banqueiro espírita é talvez a ironia mais estridente plantada por  Machado de Assis em Esaú e Jacó (1904), seu penúltimo romance. Nessa obra em que  comparece como personagem o Conselheiro Aires, tido por alguns como uma espécie  de alter ego , a “pena da galhofa” manejada por Brás Cubas cedeu bastante espaço à  tinta da melancolia. Aires, o memorialista do livro a que depois dará título, é aqui o observador de uma  história que quase nada tem do espírito brincalhão das Memórias póstumas , contudo  acentua o caráter sinuoso da narrativa. Aliás, em Esaú e Jacó os próprios jogos com a  convenção literária dão lugar a sutilezas na elaboração da frase que parecem constituir,  em passagens nas quais residem os pontos altos do relato, o grande interesse do  narrador. “Quisera querer”, diz este, em sintaxe antecipadamente pessoana, para definir  o estado de espírito de Batista, pai da heroína

Perto do coração selvagem

Primeiro livro é trailer de toda a obra de Clarice Raros são os escritores que exibem, já na obra de estreia, toda a energia criativa de que  serão capazes na maturidade. É o caso de Clarice Lispector em Perto do coração  selvagem (1943), que o crítico pernambucano Álvaro Lins qualificou, no calor da hora, como “surpresa perturbadora”. O romance traduz a novidade terrível de um olhar selvagem sobre a desolação do  mundo moderno. Sua escrita é o próprio movimento da narrativa relutante, espelhando  mais o caos de uma mente original do que a elaboração paciente de um enredo. Essa é  a grande força, mas também a principal fragilidade da jovem escritora, então mal saída da  adolescência. Ainda hoje, o livro faz os leitores mais experientes pensarem em  Rimbaud. Joana, em torno de cuja consciência dança o foco narrativo, é desde cedo capaz de  possuir de longe as coisas: “Não precisava aproximar-se de Arlete para brincar com  ela”, é como se descreve a relação da menina com sua bo

A rainha dos cárceres da Grécia

Aventura ficcional de Osman Lins se encerra com obra estranhável A progressiva incorporação do narrador ao próprio relato constitui o enredo em A rainha dos cárceres da Grécia (1976), último romance de Osman Lins. Apresentando-se como professor de Ciências, aquele se dispõe a escrever um ensaio sobre o livro de sua namorada Júlia Enone, morta ainda jovem. O título dessa obra, reproduzida em apenas 65 cópias mimeografadas, é justamente A rainha dos cárceres da Grécia . O romance é construído em três níveis, o primeiro sendo o relato do desvendamento do livro de Júlia, cuja personagem principal é Maria de França, moça “parda e pobre”. Em Recife, ela passa longo tempo transitando entre infindáveis instâncias burocráticas. O objetivo dessa odisseia miserável é obter um benefício previdenciário. Mas a evidente referência ao universo de Kafka é apenas o ponto de partida para um labirinto especulativo no qual cada vez mais, aparentemente, o narrador se perde. O que de fato ocorre é q

Vila dos Confins

Crônica regionalista redime o primeiro romance de Mário Palmério Livro que, segundo o próprio autor, “nasceu relatório, cresceu crônica e acabou romance”, Vila dos confins (1956) se apresenta ao leitor como um composto em que os três gêneros compõem um todo harmônico. Avultam, como elementos que justificam os elogios obtidos pela obra de Mário Palmério, o retrato da paisagem regional e, principalmente, a reconstituição do falar sertanejo. Quanto ao relatório, é em torno dele que se constitui o tronco principal do enredo. Mário Palmério foi deputado federal por Minas Gerais, nos anos 1950, em duas legislaturas, e sem dúvida é na condição de reminiscência eleitoral que entra em Vila dos confins o relato de uma eleição municipal no interior mineiro. Os topônimos são fictícios, mas a descrição dos tipos humanos bate com os arredores do Triângulo Mineiro, onde Palmério se fez escritor e, posteriormente, grande empresário da educação superior. O enredo, por sinal, é a parte fraca do

A pata da gazela

Paródia de Alencar faz de Cinderela um caso inverossímil de podolatria Não é que o leitor não tenha o direito de esperar uma narrativa interessante girando em torno de um pé de sapato. A história de Cinderela tornou-se, baseada na demanda do príncipe para descobrir a dona de um sapatinho de cristal, um dos mais famosos e imortais contos da literatura ocidental. Mas, ao adaptá-la ao relato de um fetiche burguês e moderno, José de Alencar desprezou elementos de seu próprio aprendizado como ficcionista, e, assim, A pata da gazela (1870) resultou num romance dos mais chochos. Já em Cinco minutos (1856) o enredo alencariano, estruturado de maneira semelhante, funcionava muito melhor. Somente a condescendência em desengavetar uma obra menor explica, da parte do escritor maduro, ter publicado esse livro que nada acrescenta ao patrimônio dos “romances urbanos”, reiterando o abuso de alguns dos expedientes mais batidos do repertório romântico, como o solilóquio em linguagem veemente.

Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres

Ulisses e a sereia trocam de lugar, mas no final tudo dá certo Pode-se toma r emprestado o título de outro livro da autora para surpreendê-la em flagrante delito de romance de tese, esse velho vício do século XIX: Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969), além de descrever a descoberta do amor, quer mostrar que a felicidade só pode ser clandestina. O romance, exatamente por não ter a força de A paixão segundo G.H . (1964), tem o condão de agradar aos leitores que, atraídos pelo estilo “misterioso” de Clarice Lispector, não estejam preparados para o mal-estar de que são feitas suas principais personagens. Lóri e Ulisses, cujo problemático namoro move o enredo, não cabem nessa galeria. Apenas passam cento e poucas páginas negaceando, ela principalmente, em relação ao desfecho bastante previsível. Mas Clarice armou, já a partir de seus nomes, uma instigante equação em que os papeis do sábio grego e das sereias tentadoras se invertem; o homem é o sedutor, e Loreley (nome, ju

Helena

Até a metade, parece que o autor está prestes a livrar-se do Romantismo Helena (1876) é um romance em duas metades bem distintas. Na primeira, Machado de Assis concentra seus talentos na elaboração do estilo que o consagraria como o grande ficcionista brasileiro: senso de medida, economia narrativa, construção psicológica verossímil. Na segunda metade, tudo isso se perde num melodrama palavroso com lances quase alencarianos de sentimentalismo. Parece que a experiência do teatro romântico, no qual se desenvolvera o ficcionista, vem perturbar a narrativa, iniciada com o desenho firme da surpresa e demais efeitos do reconhecimento pelo Conselheiro Vale, em testamento, da paternidade de Helena, filha de um caso extraconjugal. A narração dos meses em que a protagonista se adapta à nova família, assim como a gradativa sugestão de um envolvimento amoroso entre ela e seu meio-irmão Estácio, colocam em cena, com alguns anúncios da magistral ironia, futura grande marca do estilo machadia

A festa

Um sério candidato a melhor romance dos anos 1970 A personagem tenta convencer o jornalista Samuel Fereszin a ir, pois será uma “festa do caralho”. Isso ocorre para lá da página 100, e ainda temos uma vaga ideia de quem seja Samuel.   A festa (1978), de Ivan Ângelo, merece figurar, qualquer que seja o critério de avaliação, na lista dos melhores romances escritos sob a ditadura militar. É concebível a dúvida, de resto admitida pelo próprio narrador, porém quando já sabia a resposta: conseguiria ele dar uma unidade àquela bagunça?   O livro gira em torno de uma festa de aniversário que não parece ser o centro de coisa alguma. As personagens são muitas, e aos poucos se desconfia que existe qualquer relação entre elas e uma confusão envolvendo retirantes recém-chegados a Belo Horizonte, os quais seriam   “recambiados” ao Nordeste. Isso nos últimos dias de março de 1970. A festa começa com referências fragmentárias, recortadas de fontes reais e ficcionais, ao episódio dos retir

O filho do pescador

Pioneiro do romance nacional é, com muito favor, obra sofrível Indeciso entre a narração, arroubos poéticos e um moralismo ultracarola, Teixeira e Sousa legou à posteridade o bisonho esboço de ficção intitulado O filho do pescador (1843). Historicamente falando, é o primeiro romance brasileiro; mas é com bem fundadas razões que Alfredo Bosi o exclui, na História concisa da literatura brasileira , da linhagem mais ilustre de nossa ficção romântica: realmente não seria justo colocá-lo no mesmo plano de Macedo e Alencar. Se estes aprenderam algo com o pioneiro, terá sido que deviam evitar a simples transposição do típico enredo folhetinesco francês, com seus baldes de lágrimas jorrando em desfechos invariavelmente piedosos e inverossímeis. Quem acha Alencar prolixo e moralista tem pouca chance de aguentar vinte páginas de O filho do pescador . Apesar do título, a protagonista é Laura, que, bem ao gosto do Romantismo doentio, sintetiza a contradição da beleza absoluta com o perf