A pata da gazela
Paródia
de Alencar faz de Cinderela um caso inverossímil de podolatria
Não é que o leitor não tenha o direito de esperar
uma narrativa interessante girando em torno de um pé de sapato. A história de
Cinderela tornou-se, baseada na demanda do príncipe para descobrir a dona de um
sapatinho de cristal, um dos mais famosos e imortais contos da literatura
ocidental. Mas, ao adaptá-la ao relato de um fetiche burguês e moderno, José de
Alencar desprezou elementos de seu próprio aprendizado como ficcionista, e,
assim, A pata da gazela (1870) resultou
num romance dos mais chochos.
Já em Cinco
minutos (1856) o enredo alencariano, estruturado de maneira semelhante,
funcionava muito melhor. Somente a condescendência em desengavetar uma obra
menor explica, da parte do escritor maduro, ter publicado esse livro que nada
acrescenta ao patrimônio dos “romances urbanos”, reiterando o abuso de alguns
dos expedientes mais batidos do repertório romântico, como o solilóquio em
linguagem veemente.
As personagens principais formam um triângulo
amoroso. No centro dele está Amélia, moça de 18 anos, filha de um comerciante
rico. Mas é o igualmente rico Horácio de Almeida, insistentemente chamado
“leão” (gíria da época para definir um rapaz elegante e dado a conquistas
amorosas) pelo narrador, quem de fato centraliza o enredo; os acontecimentos
mais importantes são determinados por sua obsessão pela delicada botina
encontrada na rua.
O terceiro vértice do triângulo é Leopoldo de Castro,
rapaz nem tão aquinhoado pela sorte, mas que encarna a tese idealista do
narrador: continua a amar Amélia mesmo depois de supô-la, por engano, dona de
um pé monstruosamente deformado. Ainda que inicialmente relute, ele acaba
fixando-se no amor pela beleza angelical do restante da moça – descontada a
malfadada “pata de elefante”.
Depois de algumas reviravoltas, fica esclarecido que
a dona da “pata” era Laura, prima de Amélia que tudo fazia para esconder a
deformidade dos pés. Nesse ponto do relato, Horácio e Amélia estão prestes a
casar-se, mas o interesse do “leão” pela noiva reside inteiramente em sua
súbita e inverossímil podolatria. Trapaceado pela moça, Horácio acaba
desmascarado e presencia o casamento dela com Leopoldo.
Mas e a pata da gazela?, há de perguntar o leitor. O
título é uma metáfora usada duas vezes pelo narrador, em ambas querendo
referir-se por metonímia à graciosidade do animal que, de vítima dos ardis do
“leão”, acaba convertendo-se em caçador pelo qual aquele é “esmagado”
moralmente. No caminho para se chegar a tal desfecho, a velha contaminação
retórica que faz de cada protagonista um receptáculo para os repetitivos discursos
moralistas do escritor.
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