Serafim Ponte Grande
O “grande não-livro” de Oswald de Andrade
A obra de Oswald de Andrade (ele odiava ser chamado
de “Ôsvald”) é o que de mais porra-louca se escreveu na ficção brasileira. O
escritor produziu em Serafim Ponte Grande
uma súmula de todas as transgressões modernistas. O livro, publicado em 1933, é
pura anarquia linguística e formal.
Haroldo de Campos deu-lhe a perfeita definição: “um
grande não-livro”. Realmente, a “anarco-forma” do Serafim é uma sequência de fragmentos de livros possíveis,
unificados pela trajetória do protagonista, a todos os títulos mais um alter ego do escritor, como o de Memórias sentimentais de João Miramar (1922).
Cada um dos 11 episódios dá conta de uma fase da vida de Serafim e é uma
obra-prima em termos de técnica narrativa.
Duas figuras de linguagem presidem à composição. Na
macroestrutura narrativa, emprega-se a sinédoque (parte pelo todo/todo pela
parte), um tipo de metonímia: cada episódio não é propriamente narrado, mas indicado
por anotações telegráficas que remetem a uma narrativa possível. A outra figura
é a ironia, onipresente na obra criativa de Oswald (que também escreveu
romances bastante convencionais), soma-se aos trocadilhos e à obsessão
pansexual para produzir um humor estranhamente inseparável do lirismo. Fiquemos
apenas neste exemplo: “Despiu-se brandamente como uma fada que vai dar um
trocadilho.”
Resumir Serafim
é tarefa difícil. O protagonista casa-se “na delegacia” e passa a viver tediosamente,
acumulando filhos, fantasias sexuais e a ambição de escrever literatura. A
atriz Doroteia Gomes, com quem ele tem um caso, foge com um colega da
Escarradeira (apelido da repartição pública onde Serafim trabalha). Pombinho, filho
do protagonista, envolve-se numa revolução, e o pai embarca para a Europa depois
de furtar o dinheiro do movimento. Aí começa o frenesi erótico que ocupa boa
parte da narrativa.
As memórias de viagem amplificam aquelas do Miramar, cujo fraseado cubista é agora reciclado
em muitas passagens. Mas o estilo varia como as formas narrativas, o que faz do
livro um perfeito exemplo de colagem polifônica. Colagem, por sinal, que
concretiza à perfeição a proposta do Manifesto
Antropófago (1928).
Depois da viagem de volta, dá-se o delirante “fim de
Serafim”, antepenúltimo episódio do romance, curtinho como os dois que se lhe
seguem, os quais repõem na história a família de Serafim, agora chefiada pelo ex-colega
de repartição Celestino Manso, e o amigo Pinto Calçudo, que havia sido expulso
do romance por aparecer mais que o protagonista. Serafim Ponte Grande é uma celebração anárquica do prazer da
escrita.
Eloésio Paulo Intagram: @eloesiopaulo
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