Úrsula


Fraco como ficção, mas válido como resgate histórico

Tudo (ou quase tudo) merece ser visto em perspectiva, mas não existe carimbo ideológico capaz de redimir Úrsula (1859) como obra literária. Seria o mesmo que reputar o Trabant, aquela lata-de-sardinhas equipada com quatro rodas, um bom automóvel só porque foi o que a indústria da Alemanha Oriental conseguiu fabricar.

Não se trata de negar os enormes méritos da autora, Maria Firmina dos Reis, mestiça maranhense que conseguiu ser professora e escritora numa remota província de nosso país tão cruel, hoje e sempre, com índios, negros e pobres em geral. Ocorre que mesmo a tentativa de fazer de Úrsula um romance abolicionista é desmentida pelo fato de que, no enredo, o drama dos escravos não passa de penduricalho secundário à intriga trágico-amorosa que parece ter-se inspirado bastante em Alexandre Herculano.

Além disso, tanto os negros como as mulheres do livro, à exceção de Adelaide – transformada de moça adorável em traidora abjeta –, são atacados de um coitadismo que faria a escrava Isaura parecer sortuda. A caracterização dos personagens é tão superficial que chega, por vezes, perto da abstração; o manejo da narrativa, se bem que não resulte num rimo enfadonho, é prejudicado por uma retórica medonhamente prolixa, que decerto a autora confundia com poesia.

Sobra o enredo, que é até interessante em sua mistura de clichês folhetinescos e uma atração estranha pelo incesto (dois tios vilões se interessam excessivamente pelas sobrinhas). No princípio o herói, Tancredo, fere-se num acidente e é cuidado na casa da mãe de Úrsula. Como se fosse um cabide sentimental, ele troca em poucas páginas a recente desilusão com Adelaide por um invencível amor pela personagem-título. Claro, aparece a complicação: quando os dois se prometem em casamento, abençoados pela mãe paralítica e moribunda de Úrsula, entra na história o malvado comendador Fernando P., tio da moça e (viremos a saber) assassino de seu pai.

Fernando se apaixona instantaneamente (é a regra geral da obra) por Úrsula e termina por matar o rapaz logo depois de ele conseguir, num convento, casar-se com ela. É sua quarta vítima, incluindo-se na lista os escravos Túlio e Susana, que são pretextos narrativos para o protesto – muito justo, mas isso ainda não é literatura – contra o regime de servidão.

Mulher consciente, a autora incluiu no livro um prólogo em que reduz seu mérito ao possível estímulo a escritoras que tivessem “imaginação mais brilhante” e “instrução mais vasta e liberal”.  Pode ser que essa advertência passe despercebida aos que pretendem fazer de Úrsula uma obra literária relevante, quando seu valor se reduz ao aspecto histórico.

Eloésio Paulo

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