Hospício é Deus


Louca por excesso de lucidez, escritora romanceou vida no asilo


Há consensos elementares dos quais o louco não logra participar. Nem ele nem os escritores que penetram a fundo no absurdo da condição humana. Daí aquela coincidência entre a loucura e a literatura, tão bem formulada por Soshana Felman: ambas são, no limite, “irredutíveis à interpretação”. Mas é bom lembrar que não existe a total irredutibilidade, pelo menos depois que se desenvolveu o instrumental psicanalítico de interpretação. E aqui temos um pasto farto para a Psicanálise, como para leitores (ainda os há) atraídos por vertigens e abismos.

Hospício é Deus (1965), diário escrito por Maura Lopes Cançado (1930-1993) num hospício carioca, exemplifica bem o parentesco. Nem todos os livros de loucos podem ser considerados literatura, mas nesse caso, entre outras coisas, estamos diante de um ótimo romance moderno. É quase inevitável lê-lo como ficção, e não somente porque a escritora fosse dona de um estilo invejável e tenha produzido, ao longo de tropeços e encontrões em si mesma, uma lúcida e tocante autobiografia.

É que essas notas tomadas entre o fim de 1959 e o início de 1960 certamente têm muito de fantasia. Demoraremos ainda alguns anos para ter uma ideia das porcentagens, e aliás isso importa pouco ao leitor: Hospício é Deus emociona, surpreende e perturba. A loucura de Maura é trágica, participa daquela predestinação à infelicidade profunda e irremediável que começa, talvez, no teatro grego e no Livro de Jó.

Internada várias vezes em hospícios, sempre por iniciativa própria, a menina que nasceu filha de um rico fazendeiro de Minas e se casou aos 14 anos com um piloto de avião já seria ótima personagem caso tivesse conseguido ser gente “normal”. Mas Maura, assolada por terrível inquietude ainda na primeira infância – criança assustadiça e mórbida, afeiçoada eroticamente ao pai, sexualmente abusada por empregados da fazenda –, jamais encontrou seu lugar neste mundo. Nem mesmo quando, acolhida pelos intelectuais reunidos em torno do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, teve publicados seus contos, depois reunidos na coletânea O sofredor do ver (1968). A louca se tornou cultuada escritora, mas isso não aliviou sua angústia.

O diário de Maura pode ser lido de muitas maneiras. Como libelo antipsiquiátrico, como elegia feminista, como as ruínas de um grande talento, que se revela especialmente nos poucos poemas semeados ao longo das anotações. Mas esse relato do dia-a-dia num hospício, mais do que denúncia ou lamento, é antes a confissão desesperada de alguém que parece ter nascido com o fado de ver a própria existência naufragar, dolorosa e interminavelmente.


Instagram: @eloesiopaulo

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