Perto do coração selvagem
Primeiro livro é trailer de toda a obra de Clarice
Raros são os escritores que exibem, já na obra de estreia, toda a energia criativa de que serão capazes na maturidade. É o caso de Clarice Lispector em Perto do coração selvagem (1943), que o crítico pernambucano Álvaro Lins qualificou, no calor da hora,
como “surpresa perturbadora”.
O romance traduz a novidade terrível de um olhar selvagem sobre a desolação do mundo moderno. Sua escrita é o próprio movimento da narrativa relutante, espelhando mais o caos de uma mente original do que a elaboração paciente de um enredo. Essa é a grande força, mas também a principal fragilidade da jovem escritora, então mal saída da adolescência. Ainda hoje, o livro faz os leitores mais experientes pensarem em Rimbaud.
Joana, em torno de cuja consciência dança o foco narrativo, é desde cedo capaz de possuir de longe as coisas: “Não precisava aproximar-se de Arlete para brincar com ela”, é como se descreve a relação da menina com sua boneca. Da infância solitária o
escasso enredo conduz, cheio de intermitências, à solidão maior e mais radical de quem fracassou justamente na tentativa de não ser solitária.
Primeiro a morte do pai deixa Joana à mercê de parentes incapazes de lidar com a estranheza da menina, compulsivamente sincera porque incapaz de acreditar na normalidade do cotidiano; ela é logo enviada para um colégio interno. Em seguida já nos
aparece adulta e casada, e a maior parte do livro consiste na transcrição de seus mergulhos na profundidade do próprio ser, contraposta a cada passo à insuficiente complicação dos outros – sempre dispostos a aderir a uma noção “normal” de felicidade.
Deixando de lado a questão posta por Álvaro Lins – Clarice teria aos 20 anos lido Joyce e/ou Virginia Woolf? –, é preciso concordar com ele em que o monólogo interior é a base da técnica narrativa neste livro. Mas, variando como o foco narrativo, o monólogo
sempre dá ao leitor a impressão de que Joana, assim como fazia com a boneca, penetra com seus paradoxos a própria consciência das outras personagens: Otávio, o marido; Lídia, a amante grávida deste; o homem sem nome, que afinal desaparece deixando apenas um bilhete no qual promete um dia voltar – todos aparecem como reflexos do incômodo existencial de Joana, a qual só consegue enxergar o mundo e os outros como fantasmagorias.
Toda a Clarice futura, um dos grandes escritores brasileiros do século XX, está contida nessa obra de estreia. Mas ainda lhe faltava, e novamente Álvaro Lins teve razão, desenvolver uma técnica especificamente narrativa. Perto do coração selvagem, apesar de seus momentos fulgurantes, é mais um devaneio lírico que um relato.
Instagram: @eloesiopaulo
Comentários
Postar um comentário