Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres

Ulisses e a sereia trocam de lugar, mas no final tudo dá certo


Pode-se tomar emprestado o título de outro livro da autora para surpreendê-la em flagrante delito de romance de tese, esse velho vício do século XIX: Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969), além de descrever a descoberta do amor, quer mostrar que a felicidade só pode ser clandestina. O romance, exatamente por não ter a força de A paixão segundo G.H. (1964), tem o condão de agradar aos leitores que, atraídos pelo estilo “misterioso” de Clarice Lispector, não estejam preparados para o mal-estar de que são feitas suas principais personagens.
Lóri e Ulisses, cujo problemático namoro move o enredo, não cabem nessa galeria. Apenas passam cento e poucas páginas negaceando, ela principalmente, em relação ao desfecho bastante previsível. Mas Clarice armou, já a partir de seus nomes, uma instigante equação em que os papeis do sábio grego e das sereias tentadoras se invertem; o homem é o sedutor, e Loreley (nome, justamente, de sereia) talvez ainda pudesse calafetar os ouvidos contra a sedução.
A escritora não inova ou aprofunda aqui os recursos desenvolvidos desde seu primeiro livro, o que não lhe impede de, em meio à viagem interior da protagonista, encontrar achados fulgurantes como a ideia de que “habituar-se à felicidade seria um perigo social”. O grande problema de sua escrita, às vezes até um pouco desleixada, é preencher os espaços intermediários: em certas passagens, Lóri/Loreley embarca numa verdadeira tagarelice interior.
Pudera. A matéria propriamente narrativa, como de hábito na ficção de Clarice, é escassa. Em resumo, Lóri é uma professora primária que veio do interior e já teve alguns amantes. Vive meio perdida tanto no Rio de Janeiro quanto dentro de si, com as labirínticas obsessões de Deus e da morte. Conhece Ulisses, um professor universitário metido a sabichão, e os dois passam a jogar uma espécie de xadrez sem tabuleiro. O ritmo do relato é feito da intermitência dos telefonemas dele, que costuma sumir por uma ou duas semanas. Nesses intervalos, Lóri vive sua aprendizagem solitária que consiste exatamente na preparação para o amor.
O “livro dos prazeres” é que talvez decepcione muitos leitores. Resume-se a alguns pressentimentos de felicidade e à concretização do amor (leia-se, aquele sexo epifânico reservados aos happy few), que se dá quando Lóri finalmente entende estar sua aprendizagem completa e resolve se entregar ao namorado. A narrativa termina em dois-pontos, o que parece anunciar o prolongamento, vida afora, do final feliz. Não por acaso, às vezes Uma aprendizagem... é "acusado" de ser obra para adolescentes.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Serafim Ponte Grande

Memórias póstumas de Brás Cubas

Menino de engenho