A festa


Um sério candidato a melhor romance dos anos 1970

A personagem tenta convencer o jornalista Samuel Fereszin a ir, pois será uma “festa do caralho”. Isso ocorre para lá da página 100, e ainda temos uma vaga ideia de quem seja Samuel.  A festa (1978), de Ivan Ângelo, merece figurar, qualquer que seja o critério de avaliação, na lista dos melhores romances escritos sob a ditadura militar.
É concebível a dúvida, de resto admitida pelo próprio narrador, porém quando já sabia a resposta: conseguiria ele dar uma unidade àquela bagunça?  O livro gira em torno de uma festa de aniversário que não parece ser o centro de coisa alguma. As personagens são muitas, e aos poucos se desconfia que existe qualquer relação entre elas e uma confusão envolvendo retirantes recém-chegados a Belo Horizonte, os quais seriam  “recambiados” ao Nordeste. Isso nos últimos dias de março de 1970.
A festa começa com referências fragmentárias, recortadas de fontes reais e ficcionais, ao episódio dos retirantes concentrados na Praça da Estação e à tradição histórica de injustiça e violência ligada ao latifúndio nordestino. Seguem-se, sob o título geral “Antes da festa”, seis episódios que podem muito bem ser lidos como contos. Excelentes contos, por sinal. Só então vem a sequência de cenas que dão conta de que ocorreria a tal festa. Saberemos depois que o aniversariante, Roberto Miranda Junior, tivera sua homossexualidade psicanaliticamente explicada no terceiro daqueles “contos”, por sinal o melhor.
A unidade do romance – num recurso de rara maestria – só fica evidente nas últimas páginas, ao fim da seção “Depois da festa”, um “índice de destinos” que relata o que ocorreu com cada personagem mencionada no livro, incluindo Deus e o senador Filinto Müller, um revolucionário sulista que foi o comandante da repressão do Estado Novo e acabou envenenado aos 73 anos, a bordo de um avião, em plena ditadura militar, da qual tinha sido acalorado defensor.
Houve muita ficção de qualidade durante o regime de 1964. Boa parte dela consistiu no emprego de fórmulas narrativas já desgastadas para criticar o autoritarismo. A originalidade de Ivan Ângelo se deve à escolha do caminho mais difícil: mostrar o quanto os fatos são discutíveis, já que têm sua representação moldada pela polifonia dos interesses e das decisões pessoais equívocas. Romance que dá forma a todos os impasses políticos e estéticos dos anos 1970, A festa é um dos mais sérios candidatos a encabeçar a lista mencionada no fim do primeiro parágrafo. Falamos de uma muito pouco conhecida – proporcionalmente a sua importância – obra-prima da ficção brasileira.
@eloesiopaulo

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