Zero


Retrato da consciência histórica no auge da ditadura

Zero (1975) foi um dos poucos romances censurados pelo regime militar instalado pelo golpe de 1964. Pudera: suas referências explícitas ao momento histórico, especialmente algumas descrições minuciosas da tortura praticada nos quartéis, eram uma denúncia muito forte para ser tolerada. Outros escritores retrataram o regime no auge da repressão, mas nenhum de maneira tão contundente como Ignácio de Loyola Brandão. Publicado inicialmente na Itália, Zero saiu logo em seguida no Brasil e tornou-se, junto com A festa, de Ivan Ângelo, referência incontornável da ficção produzida naquele período.

A forma do romance é tão representativa quanto seu conteúdo, e por sinal homóloga a ele. Isso torna o livro um tanto datado, mas é preciso observar que no início dos anos 1970 as coisas não apareciam tão claras como as vemos hoje. O autor construiu uma narrativa caótica e impura, e exatamente por isso Zero é uma das obras que melhor representam as possibilidades e limitações da cultura brasileira sob o regime dos generais. Traduz pioneiramente, por exemplo, a relação perversa entre sexo e violência, que se tornaria, já desmoralizada qualquer intenção de censura, a nota dominante do imaginário social brasileiro fabricado quase monopolisticamente pela Rede Globo nos anos 70 e 80.

No centro do relato está José Gonçalves, cujas aventuras compõem uma bizarra odisseia através da consciência histórica feita em cacos pela violência do regime. O percurso do protagonista é mais do que errático: beira o incompreensível. Sabemos que ele vivia de matar ratos num cinema, que morava num depósito de livros (dos quais leu muitos), que se tornou depois matador e finalmente se integrou a um grupo guerrilheiro chefiado por Gê, um significativo (para a simbologia esquerdista da época) híbrido de Cristo e Che Guevara. Sabemos também que José se casa com Rosa e que ela acaba literalmente consumida num ritual de macumba – episódio verdadeiramente obscuro, a não ser, talvez, para iniciados em religião africana.

A impureza da escrita é em boa parte intencional e responde pela surpresa que ainda é a leitura de Zero, mesmo para quem conheça os recursos icônicos abundantes no livro (efeito aparente da leitura de |John Dos Passos).  Não se justifica, porém, a ausência de uma revisão que suprimisse os muitos erros de gramática, esses evidentemente involuntários. Se ainda resta algum critério em literatura, o romance merece ser lido com as ressalvas que precisam ser feitas a um produto artístico mal acabado.  Ainda que histórica e esteticamente muito importante.


Eloésio Paulo

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