Memórias de um sargento de milícias


Divertida crônica dos costumes da época de D. João VI

A pergunta sobre a “utilidade” da literatura, que as mentes pragmáticas não se cansam de repetir, recebe boa resposta numa leitura atenta das Memórias de um sargento de milícias (1854/5), romance de Manuel Antônio de Almeida inicialmente publicado na forma de folhetim. O caráter dialético da moralidade em relação ao interesse, a relatividade do mérito para a ascensão social, os institutos do pistolão e do jeitinho brasileiro: esses temas com que certos sociólogos se comprazem em longas arengas científicas são apresentados pelo romancista, no seu único livro, com a saborosa despretensão característica do saber verdadeiramente lastreado.

Assim, seguir as venturas e desventuras do malandro Leonardo, “filho de uma pisadela e de um beslicão” (e nascido apenas sete meses depois deles), conjuga o prazer do texto à compreensão sucinta das razões pelas quais o Brasil se tornou o que é. O autor, que era um estudante de medicina com apenas 21 anos, revela lucidez e uma visão em profundidade dos mecanismos que movem a sociedade brasileira. A tanto jamais chegariam Alencar e Macedo; Machado de Assis, por sinal afilhado literário do autor das Memórias, seria, como se sabe, um caso muito à parte.

Os curtos capítulos do romance, alternando cenários e intercalando conflitos, logram compor um painel bastante representativo do que era a vida no Rio de Janeiro do início do século XVIII: “Era no tempo do rei”, a frase que inicia a narrativa, refere-se aos 14 anos que D. João VI viveu na colônia. Entre meirinhos, barbeiros e desocupados de vária casta transcorre a vida de Leonardo, cujo caráter refratário ao trabalho, à ordem e à disciplina o leva à prisão, ordenada pelo temível major Vidigal, e à perda do conveniente casamento com Luisinha, herdeira de respeitável patrimônio.

Não por acaso o livro, sem ter feito sucesso como as rocambolices alencarianas, varou o século XX quase esquecido, sendo revalorizado em 1941 por um ensaio de Mário de Andrade: Leonardo é o mais legítimo predecessor de Macunaíma. Herói de escasso caráter, será amparado em seus apuros pela capacidade de captar simpatias e pela proteção dos padrinhos. O final feliz, um dos poucos ingredientes românticos do livro, traz a providencial morte do antagonista José Manuel, que deixa viúva Luisinha, bem no momento em que Leonardo se redime socialmente pelo favor de um Vidigal eroticamente cooptado por uma senhora, digamos, desfrutável.

Para temperar a visão pândega que embala a história, o narrador mobiliza seu conhecimento da saborosa fala popular da época. Simplicidade – como não? – pode  rimar com obra-prima.

Eloésio Paulo
https://eloesiopaulo.blogspot.com/

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Esaú e Jacó

O filho do pescador

Kalum