A hora da estrela
A pouca vida e a muita morte de Macabéa
“Estou me interessando terrivelmente por fatos”: a
fala do narrador de A hora da estrela
(1977) expressa um contato até certo ponto tardio, pois Clarice Lispector
passou a vida preferindo tratar do efeito dos fatos na consciência de suas
personagens. As jornadas interiores neste livro publicado meses antes da morte
da escritora são curtas, ainda que certeiras, pois a personagem principal é
matéria tão pobre que o único momento verdadeiramente intenso de sua vida é o da
agonia, na qual ela se sente importante pela primeira vez.
Na hora da morte, Macabéa finalmente “nasce”, e por
isso o narrador, um certo Rodrigo S.M. (“na verdade Clarice Lispector”),
comenta entre parênteses: “A verdade é sempre um contacto interior inexplicável.
A verdade é irreconhecível. Portanto não existe? Não, para os homens não
existe.” Esse comentário, por contraste, confirma o quanto tratar de “fatos” era
algo estranho à obra da escritora.
Depois de um introito relutante, em que o narrador
se recusa a falar da “nordestina”, da “datilógrafa”, da moça de Alagoas que
tinha “ombros de cerzideira”, ele finalmente entrega os parcos acontecimentos
da vida de Macabéa: órfã, criada por uma tia cruel porque sexualmente
frustrada, a mocinha viera parar no Rio de Janeiro, cidade inconcebível para
alguém que contava com uma experiência tão pobre. Peça dispensável na
engrenagem do mundo, Macabéa é “incompetente para a vida”, razão pela qual o
narrador sofre ao falar dela. Sofre, paradoxalmente, por amá-la e por odiá-la.
Ninguém sequer olha para Macabéa. Ela não tem corpo
apreciável, não tem rosto atraente, não cheira bem. Divide com quatro moças um infecto quartinho
de pensão. Mesmo assim, não pensa ser infeliz, chegando a fantasiar-se, em
devaneio, ninguém menos que Marilyn Monroe. Mas um dia um homem enxerga
Macabéa: outro nordestino perdido no Rio, com o ridículo nome “Olímpico de
Jesus” – também por isso, viria a concretizar sua vontade de poder elegendo-se
deputado.
O namoro dura pouco: Macabéa nada tem a oferecer,
exceto uma virgindade seca que não pode apetecer ao ambicioso Olímpico; ele prefere
a estenógrafa Glória, oxigenada e filha de açougueiro. Nem sofrer por amor
Macabéa sabe, tamanha a sua magreza existencial; mesmo assim, aceita o dinheiro
emprestado da rival vitoriosa e vai consultar uma cartomante gorda. Aqui há uma
ironia: o vaticínio de Madama Carlota sai extraviado, e esperando pela profecia
errada Macabéa encontra, quando morre atropelada, sua “hora da estrela”. O
último romance escrito por Clarice Lispector é uma sofrida tentativa de
intimidade com a morte.
Eloésio Paulo
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