O casamento
Romance “imoral” cheio de “leprosos”:
puro Nelson Rodrigues
Nelson
Rodrigues divertiu-se diabolicamente com as taras da burguesia. Em sua obra, a
psicanálise se repete como farsa. Nelson se olhava ao espelho e, encarando suas
próprias obsessões, fazia-as matéria-prima para uma galeria de tarados, na
ficção e no teatro. O romance O casamento,
como quase qualquer peça de sua obra, vale por uma súmula dessas obsessões,
também sintetizadas pelas famosas frases lapidares do escritor.
Uma
delas – “Só os profetas enxergam o óbvio” – aparece nas primeiras páginas do
relato, cujo enredo se concentra na véspera e antevéspera do casamento de
Glorinha, filha de um ricaço carioca. Sabino, o pai, vai tendo sua nauseabunda
consciência moral exposta ao longo desses dois dias, aos quais o escritor
entremeia, com invejável perícia narrativa, episódios do passado que vão
esclarecendo o drama do presente. O itinerário de Sabino é uma procissão de
vilezas próprias e alheias cuja pátina vai-se desgastando no atrito com os
fatos, deixando a nu uma sociedade muito bem catalogada pelo enérgico monsenhor
Bernardo: “Todos somos leprosos.”
A
lepra é moral, e só não levamos tão a sério as tragédias que ela provoca
porque, no registro trágico de Nelson, entra sempre o quantum de ridículo que o exagero provoca. Talvez Nelson pudesse
escrever isto: a tragédia é uma crença cega na possibilidade do exagero.
Ninguém duvida de que cada episódio do livro seja verossímil, mas a soma de
todos eles é um acúmulo de sofrimento misturado a tal cinismo que beira o
impossível. O leitor para, pensa e conclui: “Sim, é possível alguém ser tão
amoral e hipócrita, mas não que todo mundo seja tudo isso ao mesmo tempo.”
Glorinha,
afinal, é uma sósia das protagonistas de Engraçadinha
e Bonitinha, mas ordinária. Tem carinha
de anjo e um corpo disposto mergulhar em variadas práticas sexuais à primeira instigação.
A cada poucos capítulos se descortina, em ágeis incursões ao passado dos
personagens, um arcabouço de transgressões morais que em tudo contradiz a
versão oficial do que seja uma típica família respeitável.
E
não escapam o típico – na obra de Nelson – ginecologista antiético (para dizê-lo
eufemisticamente), a mãe que beija a filha na boca, a secretária que se dá ao
patrão e cujo outro amante tem uma mulher hanseniana. O desfecho é uma expiação
de Sabino em que a dramaticidade, previsível como outras passagens do livro,
soa autêntica talvez porque esvaziada do exagero trágico e resolvida num
paradoxo até crível: a prisão como alívio. Lê-se com prazer esse romance
censurado como “imoral” pela ditadura militar.
Eloésio Paulo
Uma análise clara e com texto inconfundível de Eloésio Paulo, sobre o romance de Nelson Rodrigues, O Casamento. Eloésio que é um poeta brilhante, que se destaca no meio literário principalmente por sua aguçada inteligência e percepção, consegue interpretar e analisar de forma única os romances que lê. Patricia de Oliveira.
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