A moreninha


Obra de Macedo criou modelo para o romance no Brasil

O estilo romântico expressa dois movimentos contraditórios da História: a crise dos valores aristocráticos e a elaboração de uma ideologia capaz de acomodá-los à nova visão de mundo plasmada pela economia burguesa. A moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo, sintetiza de modo paradigmático a contradição, encartando na previsível e frívola idealização do amor um retrato levemente irônico da sociedade fluminense da época. O romance é, com razão, tido pela historiografia literária como a primeira manifestação considerável da ficção brasileira.

Narrado em terceira pessoa (mas isso saberemos somente no desfecho) pelo“semidoutor” Augusto, o romance se concentra nos amores desse estudante de Medicina com a personagem-título, a “travessa” Carolina. A princípio achada feia e impertinente, a mocinha cresce aos olhos do narrador devido a suas demonstrações de inteligência e caráter, tudo ao longo de dois dias passados por Augusto na casa da avó de Filipe, seu colega na faculdade e irmão de Carolina. O enredo obedece à clássica fórmula do folhetim, incluindo pequenas incoerências que provavelmente passarão despercebidas ao leitor. Este deverá dispor-se a suportar um pouco de retórica: as personagens principais, cujo horizonte existencial se restringe aos namoros, falam como se fossem deputados num parlamento (no tempo em que um deputado era necessariamente alfabetizado).

A resposta da equação amorosa, embora bastante previsível, é adiada o bastante para que a leitura continue atraente. O autor sabia que a moda romântica era, com certa frequência, tola; por isso mesmo, trata de ironizá-la em várias passagens. Mas paga seu tributo ao interesse da típica leitora de folhetins, mantendo um decoro linguístico tão exagerado que chega impor o esclarecimento de que as escravas serviam o chá “decentemente vestidas” – pois era comum, na época, andarem com os peitos de fora. Para um leitor atual, as melhores passagens serão aquelas em que Macedo satiriza, por exemplo, o pendor da classe médica para a automistificação por meio do uso macarrônico de vocabulário especializado, no estilo“veja como somos foda” ainda hoje não totalmente em desuso.

A moreninha tende, como boa parte da ficção romântica, a tornar-se mais e mais um objeto de pesquisa histórica em detrimento da fruição especificamente literária: é bem provável que o leitor atual ache o livro chato, e não deixará de ter suas razões. Livros assim trazem proveito apenas a quem seja capaz de lê-los com o devido distanciamento. Ignorância histórica e falta de vocabulário podem ser, pois, sérios impedimentos.


Eloésio Paulo    Instagram: @eloesiopaulo

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