A lua vem da Ásia
Leitura
de Campos é tão prazerosa quanto perturbadora
A lua vem da Ásia (1963),
de Campos de Carvalho, traz uma novidade para a ficção brasileira: é a primeira
vez que o relato é enunciado por um louco, de dentro do hospício. O ficcionista
mineiro, também autor de Vaca de nariz
sutil e O púcaro búlgaro (não gosto de Chuva imóvel), parece seguir de perto a
lição do russo Gógol no Diário de um
louco.
Inicialmente
pensando estar em um hotel, depois em um refúgio de guerra, o protagonista vai
aos poucos percebendo os reais motivos de seu aprisionamento. Ele termina por
identificá-los a um sistema de poder que imagina ser “a mesma Ordem de sempre”,
associada um tanto difusamente aos interesses norte-americanos. Por isso, acha que os países devem passar a ser chamados de “merdas” e os Estados Unidos devem ser “a capital de todas as merdas”.
Primor
de sarcasmo, a narrativa não pretende fazer nenhuma sociologia do hospício, mas
usar o discurso da loucura como instrumento para denunciar os furos do discurso
racional. Recorre a um tipo de humor que está mais próximo de Hamlet
fingindo-se louco do que do Quixote sendo de fato louco. A linguagem “insana”,
nessa obra ainda pouco lida, subverte a concepção usual de realidade, mas
também a si mesma. E isso desde o primeiro parágrafo, ao fim do qual o narrador
informa que, depois de assassinar seu professor de lógica, havia morado sob uma
ponte do rio Sena, “embora nunca tenha estado em Paris”. Os fragmentos
narrativos que compõem o relato cancelam suas próprias regras de organização;
daí, por exemplo, a numeração absurda dos capítulos.
Carlos
Felipe Moisés observou que o narrador desse livro é afetado por uma “volúpia
geográfica”, e Roberval Alves Pereira qualifica a loucura como princípio
estruturador da narrativa. A fala do
protagonista, de fato, lembra a ideia surrealista de paranoia como técnica de
composição. Significativamente, o narrador acaba nos revelando que é um
escritor: situação comum na literatura do século XX, pelo menos desde Kafka, a
constatação de que no mundo administrado não existe lugar para verdadeira liberdade
de pensamento e expressão.
Por
isso Campos de Carvalho viveu 80 e poucos anos e, como é regra para escritores
criativos, nunca obteve a atenção do grande público. A lógica do desvio e da
contradição que presidem a seu livro tornam a leitura, apesar de muito
divertida, incômoda para quem pretende continuar refém de “verdades”
consoladoras. Percorrer o acidentado
percurso narrativo de A lua vem da Ásia
é um exercício tão prazeroso quanto perturbador.
Eloesio, fiquei louca pra ler "A lua vem da Ásia ! Como assim, fiquei pra trás? Obrigada pelo excelente texto.
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