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Mostrando postagens de julho, 2020

O louco do Cati

A sombra do Estado Novo paira sobre essa obra de Dyonélio “Exagero do mineiro?” – A resposta à pergunta feita por Flávio Moreira da Costa na orelha da quarta edição de O louco do Cati (1942) é afirmativa: sim, Guimarães Rosa estava exagerando quando o considerou um dos dez melhores romances brasileiros. Não é que o livro, com toda a sua estranheza, não seja bom. É que ele perde, bem antes de chegar à metade, o tônus narrativo inicial, virando uma sequência de peripécias meio ambíguas, meio irônicas das quais, quase sempre ao fundo da cena, participa a figura tímida do protagonista sem nome. Que pouco fala. Desde a primeira jornada, quando se incorpora a um grupo de amigos indo à praia num caminhão, ele é, sem qualquer análise mais detida, acolhido como doido manso por vários viajantes, aos quais em geral impõe despesas e algum incômodo. Isso começa com Norberto, o rapaz que o conduz ao longo do percurso encerrado numa prisão do Rio de Janeiro, capital da ditadura Vargas. (A sombra

As minas de prata

O maior romance de Alencar: chatice garantida O arremedo de aristocracia que, a ter existido na Bahia do século XVII como o descreve José de Alencar em As minas de prata (1865/6), só poderia ser ridículo em contraste com a precariedade do estabelecimento colonial, já começa a tornar o romance problemático. A princípio se tem a impressão de que essa sequência de O guarani (1857) poderia ser a grande obra do ficcionista, pois a ambientação soa muito convincente e o enredo se mostra ágil, contendo até mesmo passagens engraçadas, que sabemos não serem o forte da obra alencariana. Mas a ambição desmedida do autor degenera o romance em eloquente contraprova da inviabilidade de compor-se uma tragédia a partir de valores burgueses. A solenidade das falas em segunda pessoa do plural – até quando o falante é um escravo – acaba no erro gramatical, a pompa verbal se desmente no prosaísmo das tentativas forçadas de poetizar discursos. O enredo, cortados dois terços das mais de 800 páginas

Menino de engenho

Romance inaugura o “ciclo da cana-de-açúcar” Descontado o enorme exagero, Paulo Prado teve alguma razão ao chamar José Lins do Rego de “nosso Proust”.  Não é cabível comparar os dois estilos de escrita e de prospecção da memória, mas certamente Menino de engenho (1932), a obra de estreia do ficcionista paraibano, já o coloca no patamar dos relativamente poucos autores brasileiros que mereceriam estar na vitrine permanente de nossa literatura. O certeiro Drummond, numa crônica por ocasião da morte do romancista, elogiou sua especial competência na captação do “desmoronamento silencioso” de uma época. A época em questão é a da cultura canavieira do Nordeste, matéria de toda a obra de Lins do Rego. E o ato inaugural de uma saga de tal proporção nada tem de inseguro ou tateante. O estilo do autor é despretensioso, mas ninguém se engane com a falta de artifícios aparentes: é difícil escrever bem e com simplicidade. Entre os ficcionistas do neorrealismo nordestino, somente Gracilia

Hóspede

As coordenadas domésticas do adultério segundo Mallet Hóspede (1887), de Pardal Mallet, é daquelas obras que acabam injustamente esquecidas pela historiografia da literatura. Não é um romance ruim, apenas foi escrito em pinceladas rápidas, como se o autor tivesse pouca paciência para a “pintura” das cenas, resultado de uma tendência à abstração que o impediu de concretizar os personagens de maneira mais acessível à imaginação do leitor. Mallet era figura de proa da intelectualidade brasileira no final do século XIX. Sua obra foi curta como a vida, encerrada pela tuberculose antes dos 30 anos. Escreveu também um livro de contos e outro romance, O lar . O enredo de Hóspede , dividido em 30 capítulos curtos, é simples e se volta para o principal interesse do autor como ficcionista: a vida doméstica. Marcondes, personagem principal, é um rapaz recém-formado em Direito que é convidado a passar alguns dias na casa de Pedro, antigo colega de escola, agora funcionário público e  

Estorvo

Reduzir expectativas, boa medida para ler o romance de Chico Como cancionista, talvez Chico Buarque já tivesse contado suas melhores histórias quando resolveu escrever um romance. Boa parte de suas canções são narrativas, e muitas delas podem ser consideradas obras-primas do, por assim dizer, conto musicado. Estorvo , por isso, é muito bem escrito mas fica aquém do que um admirador teria o direito de esperar do compositor fulgurante capaz de elaborar uma Ópera do malandro . Para começar, o narrador-personagem é, psicologicamente falando, quase um zumbi. Sua amoralidade pode ter algum charme para quem não conheça o protagonista das Memórias do subsolo , publicadas em 1864 por Dostoiévski, ou aquele de O estrangeiro, de Camus, mas nada acrescenta ao patrimônio da ficção brasileira. Sempre será, é claro, possível tirar dessa espécie de narcisismo às avessas uma daquelas interpretações “sofisticadas” eternamente em moda. O relato de Chico é uma sucessão frenética de aventuras,

Memórias póstumas de Brás Cubas

A grande reviravolta da ficção brasileira Por que Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) é a obra mais importante da literatura brasileira? Nenhuma resposta é simples quando se trata de Machado de Assis. Mas podemos começar pelo mais óbvio: a ousadia da forma narrativa. O romance, com seu ritmo sincopado que Silvio Romero, em equívoco cheio de preconceito, chamou “estilo de gago”, foi um choque para o leitor da época, acostumado à previsibilidade dos enredos românticos. E até hoje é necessário certo preparo para lê-lo: há que aceitar as provocações que ele faz, com sua ironia onipresente. É o próprio narrador que, logo de saída, faz questão de amolar. Revela-se já no prólogo um “defunto autor” que escreveu “com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”. A essa notícia segue o relato do delírio que antecedeu a morte de Cubas. Um delírio não é para ser entendido, e aqui muitos leitores já empacam. Numa segunda leitura, poderá ficar claro que o delírio é um comentário da falta

Ciranda de pedra

A estreia de Lygia Fagundes Telles como romancista “Os semideuses eram apenas cinco criaturas dolorosamente humanas.” A frase resume a segunda parte de Ciranda de Pedra (1954), o romance de estreia de Lygia Fagundes Telles, uma das mais importantes ficcionistas brasileiras, que em 1944 havia publicado seu primeiro livro de contos. Nessa mencionada parte do livro, a mulher em torno de cuja consciência gravita o enredo chega a flertar com o suicídio, e a história termina à beira de um rio, o mesmo cenário da morte de Virginia Woolf.  Talvez mera coincidência, não se considerando que a mãe da protagonista fora, como Woolf, louca. Ou o próprio nome da personagem principal. Virgínia herdara a fisionomia daquele médico a quem chamava “tio” e que se havia encarregado da transtornada Laura, talvez tendo-lhe – pouco antes de varar a própria cabeça com um tiro – abreviado a morte para não vê-la outra vez no hospício. Tal episódio trágico preludia a desventura existencial da filha de

Luzia-Homem

É exagero chamar Domingos Olímpio de naturalista Não fosse seu final de péssimo gosto, forçado e que vale por um compêndio dos piores defeitos do Romantismo tardio, Luzia-Homem (1903) poderia ser considerado uma das melhores realizações do que na historiografia de nossa ficção ainda passa por Naturalismo. A figuração do Ceará durante a terrível seca de 1877, que serve como cenário ao incongruente drama amoroso da protagonista, contém os elementos essenciais para um retrato pungente daquele flagelo: as cenas chocantes de fome e degradação humana que em pleno século XX ainda foram a síntese do imaginário nacional sobre a região Nordeste, ultimamente retocada, “pós-modernamente”, por reportagens mostrando jegues abandonados ao longo das estradas, efeito perverso do crédito facilitado para a compra de motocicletas, ou neocoronéis viajando em jatos da FAB para fazer implante de cabelo. Única obra importante de Domingos Olímpio, o romance tem grandes qualidades em termos de técni

Macunaíma

Macunaíma, a verdadeira metamorfose ambulante A Semana de 22 foi São Paulo interrogando o Brasil como se diante do espelho da madrasta malvada. Mário de Andrade, paulistano porém não provinciano, inverteu a equação: pôs o Brasil a interrogar São Paulo, ou seja, o pensamento selvagem amolando nosso arremedo de civilização europeia. Macunaíma (1928) é, em primeiro lugar, uma festa da linguagem. Nela o escritor despejou em poucos dias uma verdadeira enciclopédia do folclore brasileiro, coletada ao longo de anos de pesquisa. De provérbios a piadas, de cantigas infantis ao fraseado bacharelesco, o erudito Mário costurou em seu livro, fazendo tudo caber na estória de Macunaíma, um variadíssimo e bem-humorado repertório de fragmentos da cultura brasileira. Mário chamou o livro de “rapsódia”, mas ele acabou sendo um dos principais romances brasileiros; revolucionou a linguagem, ampliando-a ao limite de reconhecer a existência do palavrão e incorporar o que Oswald chamou “a contr