Ciranda de pedra


A estreia de Lygia Fagundes Telles como romancista

“Os semideuses eram apenas cinco criaturas dolorosamente humanas.” A frase resume a segunda parte de Ciranda de Pedra (1954), o romance de estreia de Lygia Fagundes Telles, uma das mais importantes ficcionistas brasileiras, que em 1944 havia publicado seu primeiro livro de contos. Nessa mencionada parte do livro, a mulher em torno de cuja consciência gravita o enredo chega a flertar com o suicídio, e a história termina à beira de um rio, o mesmo cenário da morte de Virginia Woolf. 
Talvez mera coincidência, não se considerando que a mãe da protagonista fora, como Woolf, louca. Ou o próprio nome da personagem principal.

Virgínia herdara a fisionomia daquele médico a quem chamava “tio” e que se havia encarregado da transtornada Laura, talvez tendo-lhe – pouco antes de varar a própria cabeça com um tiro – abreviado a morte para não vê-la outra vez no hospício. Tal episódio trágico preludia a desventura existencial da filha de ambos.

As primeiras páginas do romance exibem uma habilidosa construção das personagens principais por meio de diálogos. Aos poucos o leitor ficará sabendo quem são elas, além de Natércio, oficialmente o pai de Virgínia, de Otávia e Bruna, irmãs da menina, e da governanta alemã Frau Herta, personagem tão hipertrofiada na novela global baseada no livro – a melhor trilha sonora da TV brasileira.

Quando a protagonista vai morar na bela mansão do “pai”, logo confirma o que já sabia: não será admitida na ciranda dos anões de pedra, os quais fantasia como representações das cinco crianças cujas vidas, na idade adulta, se entrelaçarão à sua.

De volta do colégio interno, onde passara de menina a moça, Virgínia vai sentindo-se cada vez mais inadaptada à família, enquanto descobre que suas meio-irmãs, bem como os vizinhos a quem ela um dia se julgara inferior, estão atoladas em vidas sem sentido. Ela mesma se deixa levar, cinicamente, na maré de adultério, sexo casual e lesbianismo que em tudo contradiz suas expectativas infantis: sempre havia amado o distante Conrado, aparentemente destinado à devassa Otávia. Tudo caminha para o suicídio, nesse mundo de burgueses de alma vazia. Mas:

“Ele a atraiu docemente para si.” Nas últimas páginas, antes de partir numa viagem sem destino, Virginia encontra o impotente (agora ela sabia isso) Conrado, que declara corresponder (platonicamente, é óbvio) a seu amor. Mesmo sendo tarde demais para o final feliz, essa recaída sentimental consegue estragar com um romantismo recalcitrante o livro que poderia ter sido obra-prima de análise psicológica. Ainda assim, poucos escritores estrearam tão bem como romancistas.
Eloésio Paulo
https://eloesiopaulo.blogspot.com/

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