Estorvo

Reduzir expectativas, boa medida para ler o romance de Chico

Como cancionista, talvez Chico Buarque já tivesse contado suas melhores histórias quando resolveu escrever um romance. Boa parte de suas canções são narrativas, e muitas delas podem ser consideradas obras-primas do, por assim dizer, conto musicado. Estorvo, por isso, é muito bem escrito mas fica aquém do que um admirador teria o direito de esperar do compositor fulgurante capaz de elaborar uma Ópera do malandro.

Para começar, o narrador-personagem é, psicologicamente falando, quase um zumbi. Sua amoralidade pode ter algum charme para quem não conheça o protagonista das Memórias do subsolo, publicadas em 1864 por Dostoiévski, ou aquele de O estrangeiro, de Camus, mas nada acrescenta ao patrimônio da ficção brasileira. Sempre será, é claro, possível tirar dessa espécie de narcisismo às avessas uma daquelas interpretações “sofisticadas” eternamente em moda.

O relato de Chico é uma sucessão frenética de aventuras, às vezes no limite do puro devaneio. O número de personagens é excessivo, embora claramente inscrito no projeto narrativo. Ninguém dirá não saber o autor o que estava fazendo; apenas, talvez não fizesse muito sentido fazê-lo.

Se a falta de sentido é o próprio tema, a boiar numa sopa violenta (esteve muito em voga tal refogado da iniquidade social brasileira), por sua vez o narrador fica muito bem definido no título: filho, ex-marido, irmão, cunhado, em qualquer posição só faz atrapalhar a vida alheia. Mas a sua não é uma inépcia apenas existencial como a de Franz Kafka: é um vazio completo de propósito e intenção. Tudo o que ele faz ou tenta fazer fica pela metade, até o furto das joias da irmã milionária – cujo rendimento é uma enorme mala de maconha que ele nem tenta traduzir em dinheiro.

O enredo é percorrido por – ou percorre-a, ao gosto do leitor – uma galeria de personagens sem muito lastro, caracterizados apressadamente, num frenesi que atravessa os 11 capítulos do livro; todos padecem da mesma falta de substância que o protagonista. Um livro inteiro de zumbis, a que vem dar certa coesão tardia o pré-desfecho policial: acham-se, então, as joias da irmã num cenário cheio de bandidos metralhados.

Mas ainda ficará faltando falar do ex-amigo que declamava poemas em francês, da amiga “magrinha” e insinuante/carinhosa da irmã, da mãe idosa e abandonada do narrador, do porteiro negro que achava engraçadíssimo a ideia de que “preto não tem signo”.

Estorvo, enfim, pode ser considerado um bom livro segundo a boa vontade de quem lê. Para sua própria sorte, o autor já havia cometido histórias geniais como “Pedaço de mim”, “Meu guri”, “Geni e o zeppelin”...
Eloésio Paulo
https://eloesiopaulo.blogspot.com/

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