Memórias póstumas de Brás Cubas
A
grande reviravolta da ficção brasileira
Por
que Memórias póstumas de Brás Cubas
(1881) é a obra mais importante da literatura brasileira? Nenhuma resposta é
simples quando se trata de Machado de Assis. Mas podemos começar pelo mais
óbvio: a ousadia da forma narrativa. O romance, com seu ritmo sincopado que
Silvio Romero, em equívoco cheio de preconceito, chamou “estilo de gago”, foi
um choque para o leitor da época, acostumado à previsibilidade dos enredos
românticos. E até hoje é necessário certo preparo para lê-lo: há que aceitar as
provocações que ele faz, com sua ironia onipresente.
É
o próprio narrador que, logo de saída, faz questão de amolar. Revela-se já no
prólogo um “defunto autor” que escreveu “com a pena da galhofa e a tinta da
melancolia”. A essa notícia segue o relato do delírio que antecedeu a morte de
Cubas. Um delírio não é para ser entendido, e aqui muitos leitores já empacam. Numa
segunda leitura, poderá ficar claro que o delírio é um comentário da falta de
sentido da vida – pois falamos de um livro que não foi feito para uma só
leitura.
Depois
da estripulia inicial, a narração fica mais linear, voltando ao nascimento e à
infância de Cubas. Os capítulos curtos, cheios de tiradas sarcásticas e
subversões da convenção narrativa, relatam a vida de um típico representante da
classe alta brasileira no século XIX. Ele é perverso, caprichoso, pusilânime e,
sobretudo, incapaz de fixar sua vontade em algo, seja uma noiva ou uma candidatura
a deputado. O balanço é um redondo fracasso, no amor e nas tentativas de
tornar-se famoso e importante.
Mas
a vaidade frustrada não se compensa por qualquer tipo de autocomplacência.
Paradoxo da forma realista, a absurda condição de morto confere a Brás Cubas a
maior isenção imaginável da parte de um narrador. Se há drama pessoal no
romance, é um drama em surdina: a inapetência existencial do protagonista torna-o
incapaz de levar-se a sério – ou às pessoas que o rodeiam, cujas motivações são
sempre ocultas, às vezes mal compreendidas. A veleidade, invocada no conto
“Dona Benedita” como divindade tutelar, paira sobre todos. Os personagens todos
participam do baile de máscaras que é a vida em sociedade. São hipócritas pouco
atentos – ou mais, casos da alcoviteira dona Plácida e da prostituta Marcela, mas
nenhum escapa à chibata do destino.
A
morte do narrador, além de fechar o relato num círculo, enseja o célebre
capítulo “Das negativas”, encerrado pela frase final do romance, uma das muitas
pérolas de descrença e relativismo cunhadas por esse burguês medíocre tornado
narrador genial: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de
nossa miséria.”
Eloésio Paulo
https://eloesiopaulo.blogspot.com/
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