Menino de engenho
Romance inaugura o “ciclo da
cana-de-açúcar”
Descontado o enorme exagero, Paulo Prado teve alguma
razão ao chamar José Lins do Rego de “nosso Proust”. Não é cabível comparar os dois estilos de
escrita e de prospecção da memória, mas certamente Menino de engenho (1932), a obra de estreia do ficcionista
paraibano, já o coloca no patamar dos relativamente poucos autores brasileiros
que mereceriam estar na vitrine permanente de nossa literatura. O certeiro
Drummond, numa crônica por ocasião da morte do romancista, elogiou sua especial
competência na captação do “desmoronamento silencioso” de uma época.
A época em questão é a da cultura canavieira do
Nordeste, matéria de toda a obra de Lins do Rego. E o ato inaugural de uma saga
de tal proporção nada tem de inseguro ou tateante. O estilo do autor é
despretensioso, mas ninguém se engane com a falta de artifícios aparentes: é difícil
escrever bem e com simplicidade. Entre os ficcionistas do neorrealismo
nordestino, somente Graciliano e Rachel de Queiroz se podem comparar ao autor
de Fogo Morto.
Menino de
engenho é narrado em primeira pessoa por Carlos Melo. A ação
se passa entre os quatro e os 12 anos de idade do menino, e nesses oito anos
cabe um mundo inteiro, o mundo ainda semifeudal do Nordeste dominado pelos
coronéis da monocultura. José Paulino, avô do narrador, é recordado como um
“santo que plantava cana”, retrato que rendeu ao ficcionista muitas críticas: onde
já se viu pintar um regime de servidão como espaço no qual os vassalos
respeitam e agradecem ao suserano?
Mas um romance não pode simplificar as coisas, e o
real é mais complexo do que qualquer esquema ideológico. O autor entrelaça
episódios, personagens e sentimentos com uma maestria na qual não poderia caber
o binômio simplista explorador/explorado. A exploração transparece sem dúvida,
mas, como se trata de recriar o real, é preciso que caibam na recriação a
tragédia, a crônica e o lirismo que nele vão. Um dos pontos altos do romance,
para quem pensa que tudo no Nordeste é seca, coincide com a descrição de uma
cheia do rio Paraíba, flagelo tão daninho quanto a falta de chuva.
O tempo de Carlinhos no engenho do avô transforma-o
de criança educada na cidade em um mandrião típico da classe dos coroneizinhos
nordestinos. Da tristeza e solidão do órfão de uma tragédia conjugal às
primeiras aventuras eróticas, incluindo a precoce infecção venérea, o menino,
em suas próprias palavras, perde muito cedo as ilusões de criança. Mas nesse
ponto Carlos está indo para o colégio, e aí começa Doidinho, o segundo romance (e leitura igualmente deliciosa) do
chamado “ciclo da cana-de-açúcar”.
Eloésio Paulo
https://eloesiopaulo.blogspot.com/
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